Raça, classe e gênero: a interseccionalidade, entre a realidade social e os limites políticos, por Houria Bouteldja
Antes de abordar a noção de interseccionalidade, gostaria de esclarecer um ponto. Eu não falo aqui a partir de um ponto de vista culturalista, religioso ou identitário. Eu falo desde um ponto de vista materialista e descolonial. Insisto neste ponto, visto que, na França, exprimir um ponto de vista crítico do universalismo branco é imediatamente interpretado como culturalista, particularista. Para ilustrar isto, refiro-me a um exemplo que me foi narrado recentemente: Eric Fassin, sociólogo engajado que trabalha sobre a politização das questões sexuais e raciais (e que alguns conhecem aqui em Berkeley), declarou na jornada de estudos “Para além do casamento”, consagrada à igualdade dos direitos e à crítica das normas, que minha intervenção no debate (1) (consagrada, entre outras, à interseccionalidade) me classificava de facto na categoria dos “culturalistas”, na mesma família que os homonacionalistas. Essa classificação que est ao mesmo tempo uma acusação e uma condenação me faz rir por sua superficialidade e sua pobreza, pois o caráter materialista de nossas intervenções sobre este assunto é bastante clara para os que se deram ao trabalho de nos ler com atenção. De fato, nossa proposta é elaborar um projeto político a partir da condição concreta e material dos indígenas, não a partir de alguma ideologia (Nota da tradutora: indígenas, neste contexto, equivale a sujeitos coloniais. O Partido dos Indígenas da República se apropria deste termo uma vez que os indivíduos das colônias francesas eram chamados indígenas pelo sistema colonial. Não tem a conotação de povos originários ameríndios, como o que o termo costuma sugerir em português). De forma que não posso deixar de pensar que as acusações incisivas de Fassin e de tantos outros são uma expressão manifesta da resistência branca e/ou dessa incapacidade de se des-eurocentrar. Não posso mais que lhes aconselhar que (re)descubram sua própria literatura política, especialmente a de Foucault, o qual foi o primeiro a fazer a distinção entre “identidade (homo)sexual” e “práticas (homos)sexuais”. Porém, mais que Foucault, existem pensadores, militantes descoloniais do Sul Global que não apenas “podem falar”, pensar... como também ensinar.
Esta foi uma breve introdução, e eu os proponho agora entrar no assunto propriamente dito. O que significa para nós, indígenas da república, a noção de interseccionalidade e, sobretudo, quais são suas utilidades políticas, porque devemos nos interessar por ela? Eu identifiquei 6 razões:
- 1: A primeira razão é que este conceito nasceu da consciência das lutas das mulheres negras e existe uma experiência comum entre as mulheres de cor nos Estados Unidos e as da Europa. Não poderíamos utilizar ou discutir este conceito sem primeiro render homenagear às feministas de cor ou ao feminismo negro a que devemos um trabalho teórico magistral, que frequentemente é aproveitado pelos meios acadêmicos para despolitizá-lo, neutralizá-lo e reduzi-lo a objeto de investigação. Considero que se esta noção teórica nasceu nas entranhas das lutas das mulheres negras em meios racistas, é porque estas teorias são válidas a priori e não é necessário esperar sua validação por parte do corpo acadêmico branco para convencer-se disto. Dito isto, preciso confessar que não conheço suficientemente bem as lutas das mulheres negras nos Estados Unidos para saber como a partir deste conceito elas conduziram suas lutas políticas, isto é, como elas articularam as opressões no interior de suas organizações. Por esta razão é que não irei abordar a questão para além do contexto francês.
- 2: Porque enquanto organização política, nós devemos refletir sobre a condição das populações que constituem nossa base social potencial: os sujeitos coloniais na França. Entre os indígenas, a metade é mulher (e há uma opressão de gênero), a maioria é pobre e discriminada (e há uma opressão de classe), e há homossexuais (ainda que a maior parte não seja declarada).
- 3: Porque as mulheres árabes, negras, muçulmanas, para mantermo-nos no exemplo de gênero, padecem da opressão de dois patriarcados (o dos brancos através das instituições e do poder, o do indígenas através da manutenção e/ou a recomposição das estruturas patriarcais tradicionais). Os dois patriarcados possuem inúmeros traços em comum, mas também interesses contraditórios. Voltarei a isto.
- 4: Porque há um feminismo branco e movimentos LGBT eurocêntricos e hegemônicos. O feminismo branco, os movimentos LGBT assim como o patriarcado branco ou o movimento trabalhista branco podem se tornar cúmplices de políticas reacionárias e racistas para a preservação de seus privilégios e interesses brancos.
- 5: Porque o feminismo e o movimento LGBT podem ser instrumentalizados pelo poder independentemente das posições políticas desses movimentos, inclusive se alguns são antirracistas e anticolonialistas.
- 6: Por razões estratégicas: quando se está em uma organização política, se deve pensar em alianças potenciais. Como a probabilidade de encontrar essas alianças à esquerda é evidentemente mais forte que à direita, somos levados a pensar na questão de classe, de gênero e de orientação sexual e de encontrar respostas, ou ao menos pistas, pois a esquerda branca, mesmo que eu duvide seriamente do seu antissexismo, se apropriou do feminismo como identidade e suas identidades (anticapitalista, antissexista e antihomófoba) se colocam como condição para eventuais alianças. E os indígenas são precisamente o sujeito político mais suspeito de sexismo e homofobia, pois suas origens culturais (sejam elas da África do Norte, do Magreb ou das Antilhas) são julgadas retrógradas e contrárias ou progresso.
Aí está a lista das razões que fazem com que a questão das opressões cruzadas - e, portanto, da interseccionalidade - nos diga respeito, a nós, indígenas da república.
Eu devo admitir que a consciência da interseccionalidade em meios brancos, notadamente entre as feministas, é inegavelmente um progresso. Me alegra sinceramente o avanço desta consciência das opressões cruzadas e saúdo todas as iniciativas e contribuições emanando do mundo branco (acadêmico ou militante) que se empenham junto com muitas organizações brancas para fazer que se admitam as imbricações das opressões e a necessidade das lutas autônomas. No último verão, por exemplo, ocorreu em Lausanne a sexta edição do congresso internacional de pesquisadores feministas, cujo tema era: “Imbricação das relações de poder: discriminações e privilégios de gênero, classe, raça e sexualidade”, no qual intervieram feministas brancas e de cor como Patricia Hill Collins, Christine Delphy, Sirma Bilge, Zara Ali, que é uma feminista muçulmana, assim como Paola Bacchetta aqui presente (Nota da tradutora: Paola Bacchetta estava fazendo a tradução simultânea no momento em que Houria Bouteldja pronunciava este discurso em Berkeley). Para mim, este evento foi um grande momento simbólico mesmo que as organizadoras estejam longe de representam o conjunto do feminismo branco, pois expressa a emergência e/ou o desenvolvimento de uma nova consciência na Europa, onde o racismo é claramente analisado como um fator estruturante tanto do feminismo branco, quanto da condição das mulheres de cor. Mas há um grande MAS, visto que constatar as opressões cruzadas, as teorizar e, em seguida, formular um projeto político que articule as três, quiçá as quatro opressões, são três momentos que se faz necessário distinguir e não confundir. Entre o primeiro momento e o terceiro, no contexto francês, há um abismo. A partir da penetração desta noção de articulação ou interseccionalidade nos círculos de extrema esquerda, se diz aos indígenas principalmente duas coisas:
- “Articulem raça, classe, gênero e orientações sexuais!”. Como se a evocação da interseccionalidade tivesse poderes mágicos. É como se a consciência das opressões cruzadas, combinada com palavras, bastasse para definir uma política e, sobretudo, para a por em prática.
- Nos disseram também: “Reúnam-se entre mulheres, como fizeram as feministas brancas. Reúnam-se em grupos não-mistos, excluam aos homens indígenas”.
Confrontados com a realidade a as lutas concretas, estes “conselhos” são de pouca utilidade ainda que sejam perfeitamente sinceros e benévolos. Basta ver o compromisso das mulheres negras nos Estados Unidos e das mulheres magrebinas na França contra as brutalidades policiais e contra a desumanidade do sistema carcerário para ver que tem havido eleição de prioridades por parte das principais implicadas e que com frequência estas se limitam a articular a raça... com a raça. Por suposto, o que eu digo é um pouco caricatural, uma vez que as mulheres, aos se levantarem contra os crimes policiais, por exemplo, agem ao mesmo tempo a favor dos seus interesses enquanto mulheres e enquanto proletárias. Não é preciso para as mulheres indígenas na França agir enquanto feministas declaradas ou enquanto anticapitalistas declaradas. Elas agem por seus interesses imediatos que são sempre uma imbricação indireta do seu interesse enquanto proletárias, mulheres e indígenas. Assim, não podemos as reprovar por descuidarem de um combate estritamente feminista, que seria uma luta contra o sexismo, pela igualdade homens-mulheres, pelo aborto, contra as violências conjugais, quando elas estão constrangidas pela violência das urgências sociais, da precariedade, desemprego, violências policiais, a educação de seus filhos e a discriminação a qual estes são expostos cotidianamente. Assim, a violência masculina que é uma realidade preocupante nos bairros populares onde vive a maioria esmagadora das populações indígenas (me refiro principalmente à violência física, ao estupro, ao controle familiar das mulheres e de seus corpos, à rigidificação dos papeis sociais de homens e de mulheres que imobiliza as mulheres nos papeis restritos de mães e esposas...) não são mais que umas opressões entre outras. Adiciono a isto a carga bastante negativa da palavra “feminismo”, que é percebida antes de tudo como uma arma do imperialismo e do racismo tanto por homens, quanto por mulheres indígenas. Daí a dificuldade para as mulheres indígenas, conscientes da necessidade de lutar contra o patriarcado, de amparar-se em uma identidade feminista assumida, pois esta pode suscitar - talvez não a censura geral - mas certamente suspeitas. Assim, o combate estritamente contra o sexismo pode ter efeitos perversos. Ele pode contribuir para reforçar a dominação masculina branca sobre os homens indígenas. De fato, o patriarcado racista branco há muito tempo percebeu que seria benéfico combater o patriarcado dos homens de cor.
Durante o colonialismo, um dos eixos estratégicos da política colonial foi justamente liberar as mulheres julgadas oprimidas ainda que as mulheres na própria França não possuíssem o direito de votar. Fanon falou longamente sobre isso n'O ano V da Revolução Argelina. Retirar publicamente o véu das mulheres foi uma das armas privilegiadas para destruir o patriarcado dos indígenas. Assim, não foram as mulheres indígenas que enfraqueceram o patriarcado indígena, mas os brancos com seu patriarcado racista, e isto faz toda a diferença. Na Europa, por outro lado, foram os movimentos feministas brancos que atacaram seu próprio patriarcado, não potências estrangeiras. Isto merece ser reafirmado para compreendermos o mal-estar de muitas mulheres confrontadas com o conceito de feminismo. Esta política segue vigente.
A França pós-colonial permanece com seu sonho de se apropriar dos corpos das mulheres indígenas e de espoliar ao homem indígena, isto é, de fazê-lo abdicar de seu único poder real. O homem indígena não tem nenhum poder: nem político, nem econômico, nem simbólico. Não lhe resta que não aquele que ele exerce sobre sua família (mulheres e filhos). No marco da luta entre os dois patriarcados, o branco dominante e o indígena enfraquecido, as mulheres devem escolher entre exercer um papel passivo e submeter-se a um ou a outro, ou, ao contrário, exercer um papel ativo e ativar estratégias para afrouxar o cerco em que se encontrar e abrirem caminhos em direção à liberdade. É preciso compreender que a margem de manobra é muito estreita. Por isso, o primeiro conselho, que consiste em articular antirracismo e feminismo, é inoperante, pois ao invés de afrouxar este cerco, ele serve frequentemente para constrangê-lo ainda mais. Por isso, o segundo conselho, que consiste em preconizar a reunião entre mulheres também é inoperante, pois este supõe o desejo das mulheres de criarem relações antagônicas contra os homens da comunidade. A política de criar grupos não-mistos é eficaz nos meios brancos, mas não nos meios indígenas. Esta é minha percepção, mas é claro que este ponto está aberto para debate.
Esclareço rapidamente que o caráter não-misto do social, isto é, a separação física entre homens e mulheres, é uma prática corrente. Me refiro precisamente aqui à não-mistura política entre os gêneros que se faz deliberadamente e que tem por objetivo excluir os homens para construir um poder feminino. Eu não tenho nada contra este tipo de prática, pois estou convencida de que ela é eficaz em determinados contextos, mas não no nosso. Porque? Por que o colonialismo e o racismo fizeram justamente separar homens e mulheres indígenas quando acusaram os homens de cor de serem os inimigos principais das mulheres de cor. O que é preciso compreender é que nós já estamos separados, já estamos divididos, já fomos construídos como inimigos uns dos outros e que o colonialismo fez penetrar nos corações das mulheres o ódio contra o homem indígena.
Eu cresci na França com a ideia de que os homens brancos eram superiores aos homens de cor, dignos de confiança, respeitosos em relação às mulheres, civilizados, etc. Os peço que leiam um artigo que escrevi sobre o tema (2). Como já estamos separados, o que pode significar este conselho dos grupos não-mistos? Eu respondo desde um ponto de vista descolonial e tomando os interesses das mulheres em conta: “primeiro, temos que nos amar”, primeiro, precisamos nos reencontrar, nos reabilitar. Em uma palavra, é preciso reestabelecer a confiança entre nós. É por isto que o primeiro eixo de luta de um feminismo descolonial que “articula” é dizer: solidariedade com os homens dominados e recusar o princípio do homem de cor como o principal inimigo.
Efetivamente, não poderíamos esquivar-nos da análise da opressão racial do gênero masculino como não poderíamos esquivar-nos de integra-la em nosso pensamento político. O exemplo do véu é absolutamente significativo a respeito, e gostaria aqui de propor-lhes uma leitura materialista: o véu tem obviamente um significado religioso. Eu me recuso a comentar este aspecto porque não quero tocar no caráter sagrado e íntimo das coisas. É importante respeitar as mulheres que usam o véu e não torná-las objeto de pura curiosidade. Por outro lado, penso que há também um significado social: o véu islâmico emerge na França após a derrota do antirracismo oficial, abstrato e moral em um contexto de relegação social e racial e em um contexto onde a ideologia dominante propôs às mulheres da imigração liberar-se de sua família, de seu pai, irmão, religião, tradição... Eu analiso a aparição do véu neste contexto como uma contestação absoluta do patriarcado branco e racista. O analiso como uma contraofensiva formidável do corpo social indígena. Através do véu, as mulheres dizem aos homens brancos, nosso corpo não está à sua disposição. Não é para o seu consumo. Recusamos seu convite para a liberação imperialista. Mas é igualmente um compromisso entre o patriarcado de cor e as mulheres de cor. As mulheres – cujos corpos são campos de batalha – sabem que os ataquem do patriarcado branco reforçam o patriarcado de cor e que este reage de maneira agressiva quando as mulheres se submetem ao patriarcado branco e racista. É por esta razão que o véu é também uma negociação. O véu tranquiliza os homens de cor. Ele lhes diz: nós lhes respeitamos, nos lhes amamos. Ele diz o que eu formulo de maneira política: “solidariedade com os homens dominados”. Mas ele tem também um efeito feminista – e é isto o que os brancos não conseguem entender. Ao tranquilizar os homens, as mulheres afrouxam o cerco ao seu redor, e conquistam espaços de liberdade.
Dito isto, adoraria esclarecer um ponto: a solidariedade das mulheres em relação aos homens é uma via de mão única. Não há reciprocidade. Os homens esperam garantias, mas nunca se solidarizam com os mulheres (salvo no plano do apoio econômico e, digamos, no plano geral da solidariedade comunitária). A solidariedade real e ativa dos homens em relação às mulheres que usam o véu se explica melhor pela vontade indomável de defender à comunidade e ao islã – algo que não desaprovo –, do que por algum impulso a favor das mulheres. Isto me desola, mas compreendo sua mecânica. Do lugar em que estamos, no cruzamento de opressões interligadas e interesses contraditórios, sabemos que ao invés do confronto frontal é preferível se adaptar passo a passo às situações em função de sua evolução.
Assim, as mulheres agem por seus interesses próprios ao agirem em função dos interesses globais de suas comunidades. Certamente, este feminismo não tem o caráter absoluto de um feminismo radical, mas eu dizia ainda agora que eu falo desde um ponto de vista materialista. As mulheres da imigração, majoritariamente pobres, são dependentes das solidariedades familiares e comunitárias; está é a razão pela qual elas não podem se permitir ao luxo da ruptura. Eu falei do véu, mas eu, que não uso o véu, tive que andar no mesmo caminho. Eu sempre negociei com o poder masculino de cor, uma vez que eu não possuía outros meios (enquanto proletária, indígena e mulher), pois não fazê-lo significaria simplesmente cumplicidade com os brancos contra minha comunidade, ruptura com minha família, e uma grande insegurança social. O preço a pagar é bastante elevado. Nós não somos heroínas.
Assim, a fórmula política que se desprende de tudo isso não é afirmar a reunião entre mulheres, mas sim a de todos juntos como indígenas. Não basta articular mecânica e explicitamente feminismo e antirracismo para liberar as mulheres. É preciso adaptar sua política aos constrangimentos que passam as mulheres. É por isto que é preciso afirmar em primeiro lugar o antirracismo contra o inimigo principal branco (pois é uma questão tanto consensual como compartilhada) e colocar em prática estratégias próprias no interior das comunidades dominadas racialmente para salvar a coexistência comunitária e preservar as liberdades individuais, isto é, jogar com os equilíbrios e integrar nelas a hierarquia entre inimigo principal e inimigo secundário.
Assim, não prego a interseccionalidade militante no sentido de que seria necessário abrir batalhas simultaneamente com 3 ou 4 inimigos principais dado a irredutibilidade das diferentes opressões e suas simultaneidade. Preconizo o direito de definir sua própria agenda, suas prioridades. Talvez estas prioridades sejam decididas sem os homens, talvez com, talvez em ruptura, talvez na forma de negociação. O que conta não são as palavras “feminismo”, “antissexismo”, “dominação masculina”, “patriarcado”. O que conta é o resultado e os meios que se dão a si mesmas as mulheres indígenas aprisionadas entre dois patriarcados. Se deve respeitar este proceder mesmo quando pareça contraditório com os interesses das mulheres, pois não há nada pior que o olhar de desprezo daquelas ou daqueles que subestimam as dificuldades que se desenvolvem entre aqueles que vivem em contextos nos quais as opressões são múltiplas.
O que eu digo a respeito das mulheres é quase identicamente aplicável aos homossexuais muçulmanos e negros que vivem nos bairros populares. A maior parte entre eles escolhe conscientemente a invisibilidade, pois o “coming out” pode ter consequências dramáticas. Evidentemente, o “coming out” é percebido como branco. Assim como o convite imperialista à liberação das mulheres, podemos legitimamente nos interrogarmos sobre o desejo não expresso daquelas e daqueles brancos/as que incentivam o “coming out” como o temor suspeito de verem-se privados dos corpos indígenas... Assim, há três estratégias possíveis para um homossexual ou uma lésbica de cor: o afastamento familiar caso possuam os meios, o que é raro; a submissão ao casamento heterossexual; ou ainda o casamento com um homossexual do sexo oposto para manter as aparências diante de sua família. O que é comum entre as três escolhas possíveis é a vontade de preservar à sua família e de recusar o “coming out”. Estudos foram feitos entre lésbicas de cor na França e o que é mais impressionante é que a recusa do “coming out” é motivada pela vontade das filhas de proteger às suas mães. Elas sabem que serão elas as culpabilizadas por uma má educação. E não me refiro aqui àquelas e àqueles, muitos, que não contemplam sequer identificar-se em sua vida como homossexuais e para quem a identidade homossexual não poderia ser pensada como uma categoria em si mesma. Pergunta: o que significa a interseccionalidade quando a invisibilidade é a escolha majoritária dos principais envolvidos?
Para concluir, o que eu digo às feministas brancas, aos LGBT e aos brancos em geral é que parem de nos dar conselhos e de interferir em nossas lutas, e que convençam aos outros brancos que o feminismo, assim como as lutas LGBT, assim como o anticapitalismo, são eurocêntricos e que eles precisam ser descolonizados. Eu dizia logo agora que não éramos heroínas. Irei me desmentir. Penso que somos heroínas e que nosso heroísmo enquanto dominadas no interior de um grupo racializado e inferiorizado significa precisamente ter alcançado nosso objetivo de dignidade em círculos tão hostis e tão conflitivos, navegar entre interesses contraditórios e fazer o que os dominantes do grupo não fazem: pensar o coletivo e o individual, o que de alguma maneira constitui as premissas de uma terceira via entre a submissão ao modelo de emancipação eurocêntrica e o regresso a uma autenticidade tão ilusória quanto perdida.
(1) Universalismo gay, homoracialismo e “casamento para todos”, em espanhol: http://www.decolonialtranslation.com/espanol/universalismo-gay-homoracialismo-y-matrimonio-para-todos.html
(2) Pierre, Djemila, Dominique…et Mohamed, em francés: http://indigenes-republique.fr/pierre-djemila-dominique-et-mohamed/
Traduzido por Vivian Souza.