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Charlie visto pelos árabes e negros dos bairros, por Aya Ramadan

 

“Estão entalados entre as armas que apontamos contra eles e as tremendas pulsões, os desejos de carnificina que sobem do fundo do coração e que eles sempre reconhecem, porque não é de início a violência deles, mas a nossa, voltada para trás, que se avoluma e os dilacera”, Jean Paul-Sartre1.

Domingo, 11 de janeiro de 2015, mais de 4 milhões de franceses foram às ruas para uma manifestação sem precedentes desde 1945, nos dizem, momento no qual a França celebrava a vitória dos aliados contra o nazismo.

Este momento “histórico”, nós, indígenas, assistimos a grande maioria pelas telas das televisões. A hora é chegada de verbalizarmos com nossas próprias palavras a maneira com que nós vivemos os acontecimentos.

A princípio, comecemos por dizer que não, os jovens árabes e negros vindos dos bairros populares não responderam ao apelo nacional. A razão é simples: não apenas nós não fomos convidados, mas, sobretudo, essa mobilização foi feita contra nós.

Retornemos aos fatos.

 

Os acontecimentos

Árabes e negros vindos dos guetos franceses assassinam jornalistas do Charlie Hebdo e clientes judeus de um supermercado kosher. Indignação nacional, choque, trauma coletivo. Marianne [figura alegórica da República francesa], a puritana, foi cortada na carne. O resultado nós conhecemos: os assassinos foram eliminados (eles mereceriam um processo? Isto não foi nem mesmo posto em questão), e quatro milhões de franceses expressaram sua unidade contra tal barbárie.

Estes assassinatos são terríveis, não há nada que contestar aí. Que as vítimas repousem em paz. Nossa proposta se situa em outro lugar. Do gueto de onde sou, os meus se questionam: porque tal reação diante desses assassinatos e não em relação àqueles cometidos pela polícia contra os jovens dos nossos bairros? Todos os anos, nossos irmãos e pais morrem brutalmente sob as balas da polícia francesa, sem que Marianne se comova. Ali Ziri, Lamine Dieng, Amine Bentounsi, Wissam El Yamni, Lahoucine Aït Omghar, Hakim Ajmi, Zied Benna, Bouna Traore, Mahamadou Marega, etc, etc, a lista é bastante longa, e os nomes desconhecidos.

Porque tal reação e, em paralelo, uma anestesia total diante das mortes maciças que provocam as expedições militares da França neocolonial na África? Ainda ontem, bombas francesas choviam na Líbia, depois no Mali, hoje no Iraque e na Síria, causando elas também o seu lote de carnificina. Por onde andaram as consciências civilizadas deste país?

Me diriam que a massa foi manipulada pela propaganda bem amarrada do Estado e das mídias visando fazer passar essas guerras neocoloniais por empreendimentos humanitários. Mas eu não creio neste argumento. Eu penso na realidade que ninguém é ingênuo na metrópole. Se trata apenas de que as vidas africanas não tem nenhum valor. Um milhão de negros mortos sob as bombas ocidentais? Um milhão de iraquianos assassinados pelas bombas estadunidenses? Um ou dez milhões, os números não tem qualquer importância uma vez que um milhão vezes zero é igual a zero!

Onde estariam estes quatro milhões de franceses no momento em que o melhor aliado de Hollande enviava bombas sobre as cabeças dos palestinos? Como nós, árabes, negros e muçulmanos, que saímos às ruas em grande número no último verão para denunciar a carnificina do Estado sionista, como poderíamos nós, hoje, nos manifestar contra a barbárie atrás ou ao lado do criminoso Netanyahou? Das nossas telas de televisão, a imagem de um Hollande sentado ao lado de Bibi nos envia a seguinte mensagem: “Bando de débeis selvagens, vejam como eu os...”

Tudo isso para dizer que não, eu não creio no humanismo dos manifestantes de 11 de janeiro de 2015, eu creio na realidade no seu humanismo seletivo, eu creio em seu humanismo branco, creio em seu humanismo racista2. Certamente, os sentimentos humanos são sinceros, quanto a isto não há o que questionar, mas simplesmente estes não surgem de maneira abstrata. Eles se inscrevem nas linhas dominantes de uma sociedade dada e nas relações de força3.

Da mesma forma, é inútil fazer outra vez uma exposição sobre o racismo que estrutura a França4, não é necessário que os manifestantes gritem “morte aos árabes” para nos darmos conta de que esta manifestação era de uma classe média branca, e que mais do que a barbárie em si, o que indignava profundamente, o que era inaceitável para ela era que esta barbárie tenha vindo de um indígena e que ela tivesse como alvo os brancos.

E nós vemos a que ponto isto se torna um consenso: a nação francesa, todo o campo político misturado, se une em bloco na mais suave emoção contra o inimigo interno que ataca o corpo nacional branco. Mais do que a França apenas, foi toda a civilização branca, colonial e racista, acompanhada dos seus tios Tom5, que se reuniu para defender o direito que apenas ela pode massacrar, exterminar, genocidar.

A “massa” francesa que se sente em perigo, que considera que um dos seus privilégios fundamentais foi desrespeitado, o de viver na paz social, responde assim ao chamado do Estado, ele que defende tão bem o seu privilégio.

Que os militantes de esquerda parem de achar justificativas para a sua agrupação descaradamente espontânea diante do apelo nacional: não havia nada de progressista nesta marcha. Não havia nenhuma possibilidade de mudança em relação ao poder estatal. Ao contrário, esta grandiosa reunião constitui uma ode que reafirma ao Estado a legitimidade da violência.

Aqui é o momento de saudar a coragem política do NPA [Novo Partido Anticapitalista] e da UJFP [União Judaico Francesa Pela Paz]6. Já no último verão, por ocasião das manifestações pró-Palestina, os militantes destas organizações estiveram ao lado dos racializados, dos dominados, dos oprimidos.

 

Os assassinos

Os irmãos Kouachi e o jovem Coulibaly, eu os conheço. Eu os conheço tão bem, eu os conheço dolorosamente bem. Eu cresci com eles, conheço a caminhada de pensamento deles, suas maneiras de compreender o mundo.

Aos Kouachi e a Coulibaly, o que foi transmitido foi a experiência da humilhação, a privação dos bens materiais, da cultura e da língua; foram também os não-ditos, as violações, as torturas e a escravidão; a herança psíquica da história dos nossos ancestrais. E o Estado francês não operou nenhuma ruptura na sua história, como dizemos no Partido dos Indígenas da República: a França é um Estado colonial... a França segue sendo um Estado colonial.

O sentimento profundo e o senso certeiro de alienação estão sempre bastante vivos nos corações de negros e de árabes dos guetos da França. Nós vivemos um sofrimento individual juntamente a um drama coletivo.

Na escola, o colonialismo dificilmente parece ter acontecido. E nossos pais são atingidos pelo mutismo em relação a este assunto. Sem memória e sem transmissão. O que é negado não pode ser pensado, elaborado, posto em palavras. Ninguém na escola nos permite articular o curso das nossas histórias individuais com o curso da história coletiva. Qualquer coisa em estado bruto está lá, e o chamado a estratégias sacrificiais sem dia seguinte é às vezes tragicamente tentador para os meus.

 

A sentença: “Eu sou Charlie”

Mas, cada vez que se trata de valores ocidentais, produz-se, no colonizado, uma espécie de rigidez, de tetania muscular”, Frantz Fanon7

O problema atualmente com Charlie é que este se tornou uma nova arma de dominação racista. Nos bairros, nós zombamos desse slogan “Eu sou Charlie”, nós fazemos jogos de palavras, nós o desviamos, nós o invertemos, nós o decompomos, e nós o vomitamos. Nós definitivamente não nos sentimos Charlie. Não é que nós tenhamos problemas em fazer homenagens aos jornalistas. É a carga simbólica de união nacional (e logo racial branca) que carrega o “Eu sou Charlie” que nós rejeitamos. É o novo emblema da Repúbica que ele constitui que detestamos, pois como filhos da imigração, nós carregamos a colonização, e “a colonização carrega consigo a condenação da República”8. Nós condenamos e rejeitamos a República e seus símbolos de maneira instintiva, sem ambiguidade nem meia-medida.

É porque o Estado-nação francês fracassará em nos impor o “Eu sou Charlie” nos nossos bairros. Recomeçam a nos falar de integração, os chefes do stablishment recebem a consigna de fichar os alunos que se recusam a respeitar o minuto de silêncio. Os professores se inquietam diante da resistência de alunos em aderir ao grande relato nacional. Falam disso nas salas de professores, nos escritórios de diretor, destinam até mesmo reuniões a este tema. Isto se inquieta, borbulha, não compreendem esta raça de rebeldes. É que a República e a religião da França, não se pode tocar! No que as diz respeito, não é mais questão de liberdade de opinião ou de expressão.

E nós, então, recomeçamos: estigmatizam, reprimem, criminalizam e penalizam. Precisamos de um sagrado trabalho político para conseguirmos elaborar a raiva, direcioná-la para um caminho de salvação, para nós mesmos primeiramente e para todos os outros em seguida. Frantz Fanon, Edward Said, Angela Davis e tantos outros traçaram o caminho. Cabe à nós segui-lo, para o bem de todos.

 

Traduzido por Vivian Souza.

 

 


Notas

1 Prefácio de Jean Paul-Sartre (1961) em FANON, F. (1961), Os Condenados da Terra, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968, p. 12.

2 “E aí está a grande censura que dirijo ao pseudo-humanismo: o ter, por tempo excessivo, apoucado os direitos do homem, o ter tido e ainda ter deles uma concepção estreita e parcelar, parcial e facciosa e, bem feitas as contas, sordidamente racista”. Aimé Césaire, Discurso sobre o Colonialismo (1950), Sá da Costa Editora, 1978, Lisboa.

3 Cf. KHIARI S. Réponse à Philippe Corcuff concernant le communiqué des Indigènes de la république sur le meurtre d’Halimi.

4 ]  Cf. BOUTELDJA H., SADRI K. (2012), Nous sommes les indigènes de la République, Amsterdam, Paris.

5 Nos referimos aqui aos chefes de Estados Africanos e Árabes que participaram no cortejo dos dirigentes políticos internacionais.

6 Cf. « Être ou ne pas être Charlie – Là n’est pas la question »,  e « J’accuse… ».

7 FANON, F. Os Condenados da Terra (1961), Editora UFJF, Minas Gerais, 2005, p. 60.

8 KHIARI S. (2009), La contre-révolution coloniale en France, La Fabrique, Paris, p.173